I parte
O público tem sempre razão, principalmente o público-rapariga, como eu.
O lynch às vezes enjoa. E sim, eu sei o dedo dele foi "apenas" na produção, mas obviamente que ninguém deixa o lynch meter apenas um dedo. Calculo que toda a gente lhe peça para meter a mão toda.
Passa-se mais ou menos assim: houve uma altura em que eu andava viciada em pão-de-deus com queijo. Depois, passei a recheá-lo com fiambre, e depois de já ter experimentado com queijo e fiambre, mas continuava viciada no pão-de-deus, comecei a comê-lo seco, a molhá-lo no leite e continuava a saber-me bem. Um dia, comecei a achar que o pão-de-deus podia ser alternado com carcaça e que a particularidade de côco que fazia do pão-de-deus, um pão especial, tornava-o agora, apenas um pão. Com o david lynch, parece-me que se passa mais ou menos a mesma coisa que com o pão-de-deus. É um tipo com muita imaginação e eu vergo-me a pessoas com imaginação, porque eu própria sofro quando adormeço, por excesso de imaginação. A minha única ida ao psicólogo, aos 8 anos, retirou de mim, essa bela conclusão: isso - referindo-se ao facto de eu ter sonhos recorrentes e ter pavor de adormecer à noite, ao ponto de berrar, em choro desenfreado, à hora de deitar - é apenas imaginação a mais. É bom sinal. Sonhar é bom sinal. Mas o lynch podia, pelo menos às vezes, tal como eu própria (um lynch em potência) me privo dos donuts com raspinhas coloridas, privar-se de elementos como os anões, para fazer um filme. E o que faz os génios, terá a ver, pelo menos um pouco, penso eu, com a capacidade de saber afastar os elementos que foram geniais num contexto, de outro, onde esses mesmos elementos, não são geniais, nem misteriosos, nem enigmáticos. São ridículos.
O que salvou a coisa, foi mesmo a Grace Zabriskie que só de respirar, já faz valer o bilhete em qualquer filme em que entre. E claro, apanharam o desgraçado do Michael Shannon que esteve, aí sim, genial, no Revolutionary Road (filme que não adorei), para revirar os olhos mais uma vez.
Os meandros da loucura (digo eu, que não pesco nada disso), são difíceis de concretizar, de filmar, de passar para o papel. E, das duas uma: ou a coisa segue os parâmetros dos manuais do freud e do lacan e sai uma coisa genial aos olhos dos equilibrados ou sai aquilo que saiu no my son my son what have ye done. Uma coisa fraquíssima. O facto da história ser verídica não me parece que traga algum interesse nem ao filme, nem ao argumento. O que mais falta por aí, são casos de filhos que matam pais e pais que matam filhos. E eu tenho algum respeito pelo crime. Acho que se deve ter algum respeito pelo impulso do crime. E digo isto, sem reflectir sobre o perdão, mas com a consciência que o pensamento arrasta o corpo para certezas que não podemos conhecer a não ser quando as conhecemos. O Brad matou a mãe porque sim, porque tinha de a matar. E se ele ouviu Deus a dizer-lhe que tinha de a matar, é porque ouviu mesmo. Ponto final. Ou se fazia um filme a especular sobre o porquê de uma pessoa ouvir deus e matar ou então, relatar que um tipo se passou da cabeça porque eventualmente viveu uma vida inteira preso à imagem beatificada da mãe e descobre, a partir de um papel numa peça de teatro, que toda a protecção que ela lhe dera, o asfixiara e não conseguindo superar o excesso, prefere aniquilá-la, não é nada de mais. E por favor, não comecem a criar teorias rebuscadas sobre o filme, porque quem começa a matar, sou eu. Obviamente que o falso-suspense sobre os reféns-flamingos era do mais previsível possível. Foi o único golpe honesto do lynch. A ideia, acho eu, era que aquilo fosse mesmo previsível e contrariasse a tendência habitual de não-desvelamento.
Além disso, parece-me muito redutor, demasiado simples, explicar sempre os homicídios dos familiares como resultado de hiper-protecção. Acontece frequentemente isso. Os putos que matam a mãe ou o pai ou são metaleiros e se vestem de negro ou de certeza que são miúdos protegidos que depois, especula o
shrink, não concretizam a separação umbilical na idade certa e lá descambam eles para a machadada. Eu não sou académica, nem numa coisa, nem noutra, nem em cinema, nem em psicologia, mas parece-me que às vezes, só muito às vezes, uma pessoa pode matar, porque sim. Como quem rouba um beijo.
Nota de rodapé: estava a ver o filme e a pensar seriamente que qualquer dia (já ando a pensar nisto há algum tempo), meto-me a fazer comunicação social para ganhar o crédito de fazer critica cinematográfica.
Naturalmente que depois de ganhar o crédito para criticar, o público passa a não ter razão nenhuma, porque o academismo é que é. Seria desflorar completamente a minha perspectiva sobre o cinema, mas hoje, a indignação subiu-me à massa cinzenta e quando eu fico indignada, fico muito profunda e deito lava, como os vulcões. Também pensei que devia aproveitar esta minha faceta, para apurar o sex-appeal.
II parte
Tenho outra dúvida televisiva que já me acompanha, desde as vezes que apanhei estas belas cenas e que agora, volto a apanhar. Não consigo entender se a tvi começou a introduzir um
alter ego ficcional na telenovela "Flor do Mar" ou se é mesmo muita falta de jeito dos portugueses. O tipo que faz de pai do rogério samora, é de rir a bandeiras despregadas. Só mesmo ver uma ou duas cenas seguidas entre ele e o "filho", para perceber. É surrealista, simplesmente. A coisa funciona mais ou menos assim. O "pai" com um discurso áspero e monocórdico, faz uma pergunta, do género:
filho, tu gostas dela? e o "filho" responde:
pai, não sei. O "pai" retoma:
tens de pensar bem naquilo que andas a fazer, filho.
Tu queres a benedita tanto ou mais do que antes, mas não consegues admiti-lo. Isto parece-me muito bonito de se dizer, mas cheira-me a quem mete a foice na cabeça alheia.
Mas a coisa ouvida é simplesmente hilariante. Porque as pausas entre as falas, nem sequer são disfarçadas, não há interrupções, não há suspensões na respiração, nada. É curioso como isto se torna importante, porque a ideia que me dá a mim, espectador, é que a figura do "pai", se tratará de um fantasma, de uma assombração, uma identidade secreta que poderá ser, eventualmente, a consciência do "filho". Ou seja, aos meus olhos, a personagem do "pai", não existe, não é real e esta compreensão afecta toda a minha percepção sobre o enredo. Há coisas mesmo perigosas na televisão..puxa!