quinta-feira, 8 de julho de 2010

estado fetal



As coisas que nos sensibilizam, que nos atingem, que nos perfuram, são iguais e diferentes.
Às vezes tenho um pensamento louco sobre as coisas que leio: sobre esta frase, alguém estará a pensar alguma coisa à hora a que a estou lendo?
Ou seja: haverá coincidência do pensamento individual, sobre o universal, uma vez que seja, ao longo da história?

[...] Levantas-te e caminhas de novo até às janelas abertas, e contemplas a cidade, assinalada apenas pelas luzes oleosas que tremelicam, extinguindo-se e voltando a aparecer. Deitas-te outra vez. E estás de novo com febre e a sonhar. Até que chega de manhã. E levantas-te, como sempre, bem de madrugada. E vais à varanda. E tornas a entrar. E vês a tua imagem multiplicada pelos inúmeros espelhos. E depois caminhas até à mesa de polimento escuro; e pegas numa folha e começas a ler. Mas a seguir deixas a leitura, colocas as mãos sobre a mesa brilhante e escura, e olhas para elas.
As mãos são o que melhor indicam a marcha do tempo.
As mãos, que antes dos vinte anos começam a envelhecer.
As mãos, que não se cansam de procurar, nem se dão por vencidas.
As mãos, que se erguem triunfantes e depois baixam derrotadas.
As mãos que tocam a transparência da terra.
Que poisam tímidas e breves.
Que não sabem e pressentem que não sabem.
Que indicam o limite do sonho.
Que planeiam a dimensão do futuro.
Estas mãos, que conheço e que apesar disso me confundem.
Estas mãos, que me disseram uma vez «tenta e foge».
Estas mãos, que já regressaram apressadas à infância.
Estas mãos, que não se cansam de esbofetear as trevas.
Estas mãos, que somente apalparam coisas reais.
Estas mãos, que já quase não posso dominar.
Estas mãos, que a velhice fez às cores.
Estas mãos, que marcam os limites do tempo.
Que se elevam de novo e procuram um lugar.
Que apontam e ficam a tremer.
Que sabem que ainda há música entre os dedos.
Estas mãos, que ajudam agora a segurar-me.
Estas mãos, que se estendem e tocam o encontro.
Estas mãos, que me pedem cansadas, para morrer.
[...]

Reynaldo Arenas
O frade olhou para as mãos

O Mundo Alucinante

(um livro lindíssimo)

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