quarta-feira, 30 de junho de 2010



Eu até nem desgosto de futebol, tal como não desgosto de telenovelas, de programas da tarde ou da manhã da tvi e da sic, do Manuel Luís Goucha ou do João Baião. Acho piada à rubrica do Nilton "Eu amo você", gosto de programas de apanhados, sei quem é a Lucinha Lins, a Deborah Seco (e sei que se escreve com h), tenho televisão, gosto de televisão, não me provoca asco, não me arrepia deixar de sintonizar a TV2 e ter de ver o "Derrubem a parede" e por acaso, já li umas coisas giras, outras deixei a meio, gosto de algumas músicas, gosto de R&B, gosto das séries "femininas", gosto de roupa, folheio revistas de moda, olho para a capa das revistas "masculinas" e entre isto tudo, acho muito aborrecido que aconteça com algumas pessoas, a repulsa (sem a lebre sexual nas mãos da Deneuve - piada óbvia só para os muito muito intelectuais) ao oposto.
E sinto um certo orgulho nisto, porque de facto, honestamente, não sinto que deva existir qualquer incompatibilidade, entre o acto de ler cinco páginas de um clássico da  literatura (ou de um menos clássico) ou acabar de ver "La Notte" (magnífico Antonioni) e em seguida, ir ver o capítulo da novela das seis. Na minha cabeça, sempre houve espaço para quase tudo. Ainda que não tenha experimentado quase tudo, por estes lados, as coisas vão acontecendo mais ou menos assim.

E compreendo que alguém que leia Heidegger, diga que entendeu tudo. Porque há coisas que estão nos livros, que a vida nos dá (concordamos todos, por certo). Mas há outras que a vida não nos dá, porque ter tudo e ver tudo, é de mais para nós. E é aí que entram os outros. Os que paralelamente a nós, foram vivendo, recebendo, experienciando essas coisas, enquanto nós, vivíamos outras. Portanto, na prática, há de facto leituras que fazemos do Heidegger e do Kant, do Fiódor e do Vian, que não entendemos, mas que pensamos entender, porque ilusoriamente, sentimos que estamos no mundo a viver todas as coisas ao mesmo tempo. E não estamos. E ter experiências, é também estudar as coisas, dedicar-lhes tempo, ler o que muitos outros escreveram sobre elas e não precipitar as certezas sobre a nossa profundidade, numa compreensão gramatical trompe`oeil.
Sempre achei profundamente pateta, atirar lama às coisas intelectualmente "menores". O professor mais espantoso que tive, o mais surpreendente, o mais profundo, o mais mágico, aquele que, a dado ponto, me espantou (começa aqui tudo, não é o que dizem?), era um adepto passional do benfica. Discutia, tinha opinião, falava dos lances, sabia os nomes dos jogadores, contrariava e ficava contrariado. E nisto, dois minutos depois, estava a olhar fixamente para a parede e a relembrar diálogos do "Der Himmel über Berlin". Parece-me que num professor universitário de filosofia, isto até fica bem, até tem graça. Se sou eu ou uma moça qualquer, é sinal de tontice, de superficialidade. Coitadinha, nós lemos tanto e ela tem um curso e é tão parvinha e até prefere o telejornal da tvi aos outros.. é mesmo burra! Pois eu continuo a achar que vale mais a pena fazer um curso do que não o fazer. Continuo a sentir algum orgulho em ter feito o curso que escolhi, ter ido a todas as aulas e tê-lo feito, sem ficar os cinco anos de rabo sentado em frente aos livros.
Alguém dizia o outro dia que continuar é muito mais difícil do que desistir. E pensando bem, é a verdade.

Quem desiste do curso, desiste porque não consegue. É simples. Pode ser um ás fora da academia, pode pintar maravilhosamente bem, ler, escrever e pontuar de forma jubilosa, aguentar-se em pontas uma eternidade, mas na verdade, a capacidade que tem, não alcança a exigência técnica do especialista sobre a matéria. E ponto final. Porque fazer um curso, não é só ter perícia sobre os rascunhos das folhas de papel, mas é ter perícia social, perícia pessoal, perícia física, psicológica. E a inteligência, passa também por aqui. A matéria é quase um bónus. E digo isto, porque ando cansada de quase ter de me desculpar por ter feito um curso e ter duas pós-graduações. Estou cansada de me sentir mal, quando as pessoas dizem "desisti porque a faculdade é uma fantochada". Porque a verdade é que desistiram por elas, porque não foram capazes, não pela faculdade. Ninguém desiste por causa de um espaço, de um edifício, de um refeitório, de uma sala sem aquecimento, de um professor difícil. E eu não tenho culpa de ter conseguido fazer tudo. E ter feito mais. Ando cansada de quase me ver obrigada a dizer que tenho pena de ter feito um curso, que se fosse agora, não o faria. Acho mesmo que já o disse. E isto não é a verdade. E acho desonesto, porque um curso dá muito mais trabalho a fazer do que ficar oito horas em pé numa loja, do que ler as obras completas de um qualquer autor, do que ficar a falar mal do sistema, das faculdades, dos alunos, dos professores, metido de cabeça baixa num call center.

Se é opção desistir, se morre o pai ou o irmão, se morre o amor, se perde uma perna, paciência. Os traumas e psicologias baratas sobre a máfia que a universidade representa, sobre a prostituição intelectual das avaliações, já enjoa. Conversas sobre os coitadinhos dos universitários, que são mais burros do que todos os outros, começa a fazer-me rir e qualquer dia, regresso ao registo Ana cara-de-poucos-amigos e respondo. Começo a responder, porque começo a achar ridículo o universo dos “não-universitários”, dos “orgulhosamente-não-estudámos-porque-somos-mais-inteligentes” (orgulhosamente sós, recordam?).
Eu já tive uma universitária a corrigir-me a pontuação e uma não universitária a corrigir-me a pontuação. E a que estava certa, era a universitária. E já tive uma universitária a corrigir a pontuação aos textos de uma não universitária e quem estava a escrever bem e a pontuar mal, era a última. Já tive um gaiato de rastas no cabelo a corrigir-me a palavra mestrado. E afinal, não há qualquer regra para abrir ou fechar o "e". E ainda acredito mais no que estudou linguística do que no que não a estudou. O mais estúpido, é que chegámos a um ponto em que os homens com rastas na cabeça e feios e as mulheres, fisicamente pouco apelativas ou normais, que não querem saber de maquilhagem, de usar salto, que não se ralam com a celulite, fazem mais facilmente "prova intelectual", do que um tipo de fato, que seja giro e se engane a escrever de vez em quando ou de uma mulher boa, que se perfume, use uma base caríssima, unhas de gel, lentes de contacto azuis e silicone nas mamas. E isto é tão falso, tão enganador, que só mesmo ver os exemplares das respectivas espécies, a falar uns dos outros, para gargalhar à farta.
Parece-me bem que ninguém faça cursos, que toda a gente vá viajar com rastas penduradas pelo cabelo e pais a pagar essas incursões que depois saltam aos olhos dos outros, como grandes aventuras independentes, que se considere que há coisas que estão mal, que a universidade não dá moral, nem ética, não te torna numa mulher ou um homem mais atraente, falha quase a 100% na sua função pedagógica, mas a verdade é que, tal como um casamento falhado proporciona, mal ou bem, momentos muito felizes, um curso, dá aquilo que quiseres que ele te dê. E aventura a sério, é ter de encerar o chão dos outros todos os dias, para pagar as propinas ao filho(a) chulo(a) que acha que só deve começar a trabalhar quando acabar o curso e tiver um carro. Ou pior: teres de encerar o chão da casa dos outros, para pagares as tuas propinas, do teu curso.
Isto para dizer, que apesar de achar incrível ter um país inteiro a definhar de medo em relação ao futuro e uma juventude sem perspectivas a glorificar o futebol, compreendo perfeitamente que se ache alguma graça ao mundial, que se vibre e chore com sete golos, que se discuta, se fique indignado, porque a manifestação é exactamente igual à que transparece do concerto da banda de música, ou do filme de que se gosta ou do parágrafo final do livro, ou do beijo esperado. A manifestação é exactamente igual à que acontece quando existe uma relação de algo para algo.

E também acho bem que o Ronaldo tenha cuspido para a câmara ou simulado que o fazia. Estava triste. E eu, quando estou triste, também tenho vontade de cuspir. E depois, foi um cuspir simbólico e no que diz respeito a símbolos, tudo deve ser permitido. Porque o universo dos símbolos é como as quatro paredes de um quarto.

E por hoje, chega de conversa.

1 comentário:

Verdades