«All sorrows can be borne if you put them into a story about it»
As coisas não são como são. Lia ontem, para contrariar. Os dias feriados, os Natais (que insisto, sem saber porquê) em escrever com letra maiúscula, as festas, as coisas que se publicitam alegremente na tv serem de/em «família», são aos meus olhos, dias terrivelmente normais. Sem o ser lamexas português que encontro em mim, cada vez que me mói a cabeça ver alguém a vender canetas do pato donald e dar-me um cumprimento profundo, apertando-me a mão, quando lhe dou uma moeda, a verdade é que nasci talhada para um contexto que não tenho. E só agora, começo a perceber que me faz falta, que grande margem do que sou agora, de mau, de escuro, de instável, de incerto, de cinzento, se deve a isso. Psicanálise sem divã, sem orçamento e sem consulta. Isto para dizer que, à parte de poder ter sido tudo pior, eu teria sido uma pessoa de mesa cheia, de muita gente, de família grande, de filhos e netos, de primos e tios, de telefonemas, de postais, de abraços, de mãos no ombro, de desabafos, de confissões, de risos, de conversas, de decisões, de opiniões, de partilhas, de reconhecimentos. Mas não fui. E nisto, sou capaz de culpar a caixa onde me fizeram nascer. Qualquer coisa que, sem grandes objectivos ou missões para o meu lado, simplesmente, me foi atribuído. Quase como as bolas que saiem com brindes de dentro das máquinas. Nós olhamos, olhamos e há sempre uma bola com uma coisa mais ao nosso jeito. Têm todas algo dentro, é certo, mas nem todas são aquelas que nos fariam felizes, nem todas trazem dentro, aquilo que tinha, aos nossos olhos, de ser nosso. «Mas que sabes tu de casamentos? Queira deus..». Pois é, que sei eu de casamentos? Mas não deve ser preciso saber muito de casamentos, para saber muito de pessoas. E não deve ser preciso saber muito de pessoas, por viver muitos anos com elas à volta, ou por falar muito com elas, ou por vê-las muito a definhar, a morrer ou a parir, para as conhecer de forma universal e transparente. Isto para dizer uma coisa que já fui dizendo a uma ou duas pessoas, e que já conclui em mim, que acontece agora, de forma forte, como nunca aconteceu antes, ou como eu nunca admiti, ou como eu nunca tive tempo para pensar. Sinto falta de laços de sangue e das coisas que os laços de sangue trazem. Visitas e coisas marcadas, perguntas e respostas, nascimentos e mortes, jantares e almoços. E isto salta por cima de progenitores, um por razões óbvias para mim, e outro porque simplesmente não consegue apagar da história, a vergonha e o hábito. E isto, analisando-me ao divã, mas na cadeira, é causa nacional (no que ao meu território diz respeito), para repudiar, afastar, neutralizar, enfraquecer, qualquer forma de vida que, aproximando-se de mim, tenha agora ou tenha tido antes, um terreno para se movimentar que, aos meus olhos, foi mais saudável, normal, certo. Os traumas, o desconforto, começa agora. Sem lamentos, que a coisa podia ter sido pior (melhor pensamento para ter nestas circunstâncias), por esta altura, começam a pesar algumas coisas que não pesavam, começo a dizer algumas coisas que não disse, começo a realizar que as coisas que fui ouvindo, que fui vendo, que fui deixando de fazer, terão tido um peso tremendo na forma como olho as coisas agora e como as culpo. E noto isso, quando não comento algumas conversas dos outros, porque não tenho ponto de comparação, ou quando me sinto melhor, mais apaziguada, quando comento as conversas de outros outros, quando lhes reconheço algum traço em que, de alguma forma, me sinto mais confortável, porque sinto mais próxima. E nisto, a minha consciência de que ninguém tem culpa de ter tido uma vida feliz, com mais ou menos problemas, mas com uma integridade familiar diria, comum, é feroz. Porque eu percebo que uma pessoa não entenda todas as outras e não tenha mesmo que entender, que não seja mesmo esse o objectivo social da humanidade: sermos todos deuses em forma de compreensão. Mas há coisas que simplesmente não há modo de contar. De alguma forma, não existem. Encontram-se entre o limbo do grave e o do «não te queixes, há pior». E neste raciocínio de comparações por graus, a ideia é que eu consiga perdoar, por não me encontrar no patamar mais alto. Há coisas que vão escapando de uma ou de outra forma. Ontem, dizia uma sra numa novela, para o seu ex-marido: «Carlos, você deixa escapar a felicidade. Eu não sei o que acontece. Comigo, foi assim, nós éramos felizes, Carlos e você, vivia sempre zangado, angustiado, revoltado. E agora, está acontecendo de novo. Você vai deixar escapar». Fiquei em suspense, na esperança que uma novela brasileira me respondesse a qualquer coisa que entendo, mas para a qual não tenho resposta. Mas o Carlos não respondeu. A questão é que, para se ser feliz, não se basta estar feliz com o outro. Tem de existir uma cumplicidade connosco, uma felicidade visceral com aquilo que és, que tiveste, que tens, que te deram, com a saúde da tua vida. E isto não passa por eventualmente teres nascido mais ou menos bonita do que nasceste, mais ou menos dedicada às coisas, com mais ou menos dinheiro. É qualquer coisas tão simples, que se reduz a um traço de humanidade que salva sempre, mesmo quando tudo o resto se desmorona. Que é conseguires voltar a casa com o sentimento de casa.
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