Reconheci que nunca iria escrever. Memórias. Sempre estranhei que, no meio de tanta publicação mundial, se escrevessem memórias. Para que serve assumir aquilo em que estamos, aquilo que fomos, o que achamos daquilo que fizemos? De qualquer forma, resolvi, ao assumir a impossibilidade, tentar fazê-lo. Há quem pense muito no processo das coisas. Eu não sou assim. Não entendo percursos, estratégias, caminhos. Só me dá para pensar naquilo que a probabilidade me traz como acontecimento meu, para mim: isto está aqui, existe, eu vivo, deixo de viver, ouço, vejo, toco. Para além disto, nada me basta o suficiente para me fazer pensar. Não sei ser a rapariga de alternativas que o desejo social exige. Porque não o desejo. Não o desejo particularmente. Não saberia reproduzir uma marylin. Torna-se incompreensível para mim, reproduizr.
As pessoas vivem, na sua maioria, como citações umas das outras. Casam com a citação de si, naquele momento. Envelhecem a pensar que encontram um novo corpo-pensamento, e em citação, amam de novo outra forma de pensar. Vejo muitos aviões a passar, durante o dia, dentro da sala. Vejo aviões e muitas pessoas. Não acho especialmente nada. Nem sobre os aviões, nem sobre as pessoas. Olho pela janela e penso que é uma das poucas cenas em que consigo não duvidar de tudo. Gente com os pés sobre o chão e gente a voar sobre a minha cabeça. Passa sempre o mesmo carro com uma mulher lá dentro, de cada vez que olho. Penso em canetas. Canetas que escrevam bem, de tinta azul, que me tornem a letra perfeita. A minha letra, foi decisão minha. Um dia, olhei para o caderno da Mariana, a rapariga que se sentava ao meu lado nas aulas do secundário e decidi que a minha letra, por achar a dela belíssima, seria igual. Hoje, tenho a letra exactamente como a da Mariana. É tão bonita, quando escrevo bem, devagar e com uma boa caneta, que me emociono, de cada vez que completo uma linha, com uma frase qualquer.
Estou o dia inteiro dentro de uma sala castanha. Duas mesas castanhas, muito largas, carpete cinzenta, cadeiras forradas a laranja e o mais triste dos armários. Um guardador metálico onde repousa, sem funcionar muito bem, uma chave de plástico preta. Se ao menos a chave trancasse tudo. Se eu pudesse dar voltas à chave e trancar, durante o dia, tudo o que guardei nos primeiros meses, dentro do armário. Mas não. Tudo se encontra por arquivar, porque nada é meu. É uma sala realmente feia. E eu penso que esta sala me estava determinada. Que este espaço dependia já do meu corpo para existir, para ter uma finalidade, uma função. Para ser.
Sei que dizem coisas de mim. Em todo o lado se criam pequenos segredos sobre a minha presença. O que penso, o que farei com o tempo, como gosto dos outros, se o meu corpo é na realidade, despido, como parece ser. Crio mistérios do lado de cá. Às vezes, faço um grande esforço pelos outros. Duvido que eles percebam, mas isso torna-me melhor porque, nesses instantes, consigo ultrapassar-me, o que se está a tornar, realmente, um objectivo engraçado. Eu tenho muita força, não é fácil conseguir pôr-me em cima de mim. Coloco um corpo acima da cabeça, dois dos lados e um por baixo da terra, um corpo subterâneo que me suporte os pés. Todos eles exercem uma pressão ideal sobre o meu espaço que me conduz ao silêncio. Nesses momentos, fixo uma ponto angustiante dentro de mim. Pode ser um órgão, o fluxo do sangue nas veias, a curvatura da coluna quando me dobro, o sonho que tive na infância, qualquer coisa que possa dizer a alguém, uma esperança, a dor no peito de há um ano atrás, o sentimento sobre a imagem do nariz de um cão, um medo, um tique, o sabor da pastilha elástica. Há muitos pontos de salvação orgânica. Até esvaziar as possibilidades, consigo evitar mais algumas palavras. E se realmente existir, pelo menos, uma pessoa no mundo que não seja compreendida por ninguém? A natureza existe?
Pensar mais em objectos do que em pessoas, sobre a instrumentalidade do que possuo, permite-me sentir algumas coisas de uma forma diferente. Sabes em que penso muito? Em como ficava bem uma mesa de madeira, pequena e com o tampo assimétrico, encostada ao braço esquerdo do teu sofá. Pensar nisso, traz-me uma espécie de felicidade fora do ângulo do que vivo. Uma felicidade de ébano. Hoje está um dia de Inverno. Gostava de não temer o Natal, a chuva, o tempo escuro. Esperava que isso não fosse tão determinante na forma como me acho ao espelho.
« Digamos que o mundo é uma figura, há que lê-la ».
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