Porque eu choro em cada episódio do Sexo e da Cidade.
Decidi-me ao perdão.
Perdoo a Célia, por apenas se lembrar de mim, quando eu me lembro dela. Por me conhecer há 30 anos e não me ter perguntado nunca como estou, por não me ter perguntado nunca, como correu uma frequência, por não me ter feito sentir nunca, que lhe podia contar qualquer coisa mais, além das conversas rotineiras entre conhecidas, por me ter visitado uma única vez nos inúmeros trabalhos que tive, por ter ido sempre acompanhada, por não ter sido capaz de ir ter comigo sozinha, por mim, para me ver. Por nunca me ter convidado para ir ao cinema, por nunca me ter mostrado uma música que gostasse. Por ter ignorado a fita de fim de curso em que me desfiz em simbologia sobre a nossa infância e que ela resumiu a uma única palavra, sem grande ímpeto. Perdoo-lhe, por eu ter de escrever isto e saber que são coisas que nunca lhe irei dizer e que ela nunca irá ler. Perdoo-me a mim, por sentir tudo isto e ainda assim, saber que não haverá uma única pessoa no mundo que responda a um pedido meu, sem perguntas, sem obstáculos, sem problemas, sem entraves, que não seja ela. E isto, é quase de mãe. E perdoo-me, porque se calhar fui eu que tantas vezes a fiz sentir-se mal, por ser sempre eu a falar muito e ela tão pouco, por eu ter sempre tanta opinião sobre as coisas e ela nunca manifestar a dela. E perdoo-lhe por ela não ter percebido que, muitas das vezes, a minha opinião vincada, era uma forma de a puxar até mim, de lhe pedir que me conhecesse, sem que fossem precisas muitas palavras.
Perdoo a Inês, por ter preferido tantas e tantas vezes, a companhia do Pedro à minha ou ter tido sempre mais espaço para o beijar, do que para conversar comigo.
Perdoo a Joana, por nos termos afastado de forma tão magoada. Perdoo-lhe por chamar preta à Patrícia, nas aulas de história do liceu, por falar mal do Francisco, sabendo que eu gostava dele, por arranjar um namorado burro, feio e mal-educado e ter casado com ele. Por se achar sempre tão fantástica mas ter sido sempre para mim, que as pessoas olhavam e não para ela. E perdoei-lhe, chamando-a. Arranjando uma forma, há uns meses, de a trazer até mim. Era talvez, a situação mais mal resolvida que tinha, que não esquecia, que não sossegava. Nada de romances desfeitos, amores impossíveis. Tinha sido uma amiga. E agora, passados tantos anos, desejava regressar a ela, regressar a nós e, sem grandes palavras, perdoar o nosso tempo. O tempo que nos juntou e o que nos afastou. Este ano, recebi uma mensagem de parabéns da Joana, mesmo a tempo, no tempo certo, no nosso tempo. E este ano, vou lembrar-me do 29 de Agosto também.
Perdoo a Patrícia, por ter sempre calado a todas as provocações da Joana e me ter deixado sempre ser eu a falar, tendo-me levado a pôr em causa, por ela, pelas lágrimas dela, um pedaço pequeno e importante, da minha vida na altura. Perdoo-lhe por eu ter saído a chorar de uma aula, revoltada, por coisas que lhe eram dirigidas e isso não lhe ter dado força suficiente para combater, sozinha, tudo isso. Foi a primeira vez que fiquei triste com as pessoas. Que entendi que a amiga ideal, não era assim tão perfeita e que a amiga-vítima, queria ser vítima. E a partir dalí, calar, foi sempre mais difícil para mim, do que falar.
Perdoo a Catarina, por não me ter reservado o livro do Pessoa, depois de a (re)lembrar 5 vezes no mesmo dia, de forma teimosa, insistente e aborrecida quando, na verdade, sei bem que sendo um certo rapaz ou outra certa rapariga, ou um rapaz qualquer ou mesmo uma rapariga qualquer, a memória ter-se-ia accionado, através de outra qualquer substância que às vezes, se mistura às coisas, determinando-as. Porque temos tentáculos, quando queremos.
Perdoo o Nuno, por num golpe de maldade, ter comentado uma vez, em plena Avenida de Berna, “o quê, os gordos também têm orgasmos?” e ter feito, com este pedacinho de gramática, desfalecer lentamente, toda a simpatia humana e algo mais que por ele nutria e isto ter sido tão estranho e tão suficiente para eu nunca mais olhar para aquela pessoa, da mesma forma, que me assustou. O poder daquela pequeníssima revelação se alastrar por todo um universo cor-de-rosa.
Perdoo ao professor que nega dizer o que me disse e me deixa desarmada para qualquer tipo de argumentação, porque ele nunca gostou de mim, porque me diz que sou demasiado centrada a falar (seja lá o que isto for), porque me disse, em tempos, que eu nunca poderia ter as notas dos alunos de história, porque não sou de história. Porque gostaria agora ele de mim? Agora, que me dá, daquelas notas que se dão só aos alunos de história?
Perdoo a mãe, por não perceber absolutamente tudo, todas as coisas, todos os dias, todos os minutos, para a vida toda.
Perdoo a rapariga da farmácia que me recomendou há uma semana, um protector solar anti-alérgico que me está a provocar o maior ataque que alguma vez tive e me deixou a cara cheia de pequenas borbulhas vermelhas. E perdoo, porque ela foi tão gentil e me deu um sorriso tão simpático, que não posso culpá-la por uma coisa que o meu corpo determinou que não quer. E certo, é o que o corpo permite e aceita. E a minha cabeça diz ao corpo que precisa de protecção e o corpo diz que não.
Perdoo-me por não conseguir dormir uma noite inteira seguida sem acordar a sonhar ou a pensar. Perdoou-me por às vezes ser má, e fazer notar, à mulher que vai em pé no autocarro, encostada a mim, que a mala dela me incomoda no braço. Que compreendo que o autocarro vá cheio, mas, por favor não me toquem no braço. Não me consigo perdoar ainda, que no Natal de 1993, tenha respondido mal, ao rapaz da Cais na estação da Amadora. Mas quando me lembro, espero sempre que ele esteja bem, que é uma forma egoísta, de ir fazendo por me perdoar.
Perdoo-me por ter a vacina do meu cão atrasada quase um ano.
Perdoo-me por tomar sempre mais um comprimido do que a dose recomendada.
Perdoo-me pelas coisas em que os outros nunca repararam, pelos momentos dos outros que não consegui salvar, pelos momentos dos outros em que eu não reparei, em que consegui estar lá.
Perdoo-me por escrever e falar sempre tanto, quando às vezes penso que o meu falar, é uma forma torcida de não ter de dizer absolutamente nada daquilo que tenho para dizer.
Perdoou-me por ir ver, esta noite, pela milésima vez, esse filme sem sentido que é o “infiel”. E perdoou-me por, da primeira vez, ter gostado.
E em todos estes momentos (exemplos), tive uma vontade tremenda de chorar.
E às vezes, até me sinto bem em ter os olhos vermelhos e inchados, porque significa que eu não aspiro a nada, que não espero do mundo, nada que o transcenda, não exijo das pessoas, mais do que elas me dão e que basta. E acontece que esse bastar é muito mais do que aquilo que eu pensaria que fosse. Foi sendo aos poucos, muito. E bastando.
P.s. Só não consigo perdoar ainda, a rapariga embirrante com quem sou obrigada a almoçar todos os dias, que nitidamente me detesta ou nutre qualquer sentimento desagradável em relação a mim, e que me tem conduzindo, por diversas vezes, a quase cair na minha própria armadilha: a palavra. Porque não se podem deitar por terra, trinta anos de universo feminino e isto de sermos todas amiguinhas umas das outras, não existe. Tal como o perdão.
Oh Ela!... que post bonito e que remate fatal - chico buarque em paris!!.... oh que recordações me trouxeste, qd vivi ali perto :) beijinhos
ResponderEliminarA minha mãe também viveu de frente para o jardim. Acho Paris demasiadamente grande para o meu corpo. O primeiro contacto foi estranho. Com o tempo, a coisa parece estar a curar-se. Beijinho
ResponderEliminarDesdobro-me diariamente em várias leituras,de um livro (actualmente As Cidades Invisíveis de Italo Calvino), dos artigos quase todos da Ipsilon até à chegada da próxima,da agenda cultural, do site de metereologia cuja previsão abrange 10 dias, de alguns blogs, entre eles este, que em dias como os de hoje em que expulsei o meu corpo da cama as 03h para ir trabalhar, destrona todas as outras possibilidades e assume-se como o vínculo que preciso de estabelecer comigo mesma e com os outros. Porque preciso de te visitar para tentar descobrir um bocadinho mais acerca de mim, tento motivar uma associação livre a partir da corrente que de ti jorra de uma forma que me emociona, que me faz querer ser melhor e mais atenta a mim e aos outros, descortinar algum sentido mesmo que seja nenhum e o que me é gratificante também tem o seu lado duro que é não chegarmos a nós senão através dos outros. Deixei de acreditar em deus mas descobri que não consigo não procurar inspirações terrenas para me definir, para atenuar, para me desculpar, para acreditar e poder admirar e aqui venho-me abastecer desse alimento. Tb me tento perdoar por isso mas ainda não consigo. És um ponto de partida que não dispenso pra continuar. Tudo isto pode soar a lamechice mas preciso mesmo de dizer quando gosto.
ResponderEliminarEngraçado, para mim é mesmo à medida do meu corpo. parece que não preciso pensar para me mexer ali. todos os caminhos, físicos e emocionais, acontecem na perfeição. já são 5 vezes que volto lá. :) beijinhos!
ResponderEliminar: )Sim, também não esperava sentir o que senti, mas a verdade é que Paris me trouxe um pensamento que já tive, mas no qual nunca acreditei verdadeiramente: estou sozinha.
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