sábado, 27 de março de 2010

de profundis amamus

Ontem

às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria


Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros


Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes

O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso

Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso



Mário Cesariny

sábado, 20 de março de 2010



 










Dar descanso
Ao cabelo molhado.
de inverno
de praia
aos livros arrumados
às migalhas de bolo no chão
ao pó na prateleira
à hora do psicólogo
ao feminino que cansas
por te sentires sempre
no teu papel
à mesa de Natal do próximo ano
ao bolor do tecto da casa-de-banho
(mais ou menos situado sobre a educação dessa mesa)
à notícia do jornal
a todas as ideias nas paredes
ao eyeliner,
tinta-da-china na estreia do filme.
aos que tens.


sexta-feira, 19 de março de 2010

Raposa:
"...Se tu vieres, por exemplo, às quatro horas da tarde, desde as três que eu começarei a sentir-me feliz..."

Le Petit Prince

(roubado mil vezes roubado a outro blog)

terça-feira, 16 de março de 2010

"Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude."

O Leopardo
Visconti

A dois


Pressa de infância. Correr atrás do rabo do cão. Joyce. Rabo negro em corpo branco e manchado. Comer a correr para virar a esquina. Atravessar dois mundos à hora de jantar. Brincar na curva e medo de lá chegar. Uma louva-a-deus nas minhas mãos. Presa de infância. Espreitar aquele filme. O «Homem invisível». O susto a entalar as mãos. Acordar eu e a panela de pressão. A luz laranja e falsa da cortina que não finge. Cor-de-laranja. Cortina e luz. O cubo mágico e o sofá verde. Horas de lógica e batota. Correr com as mãos agarradas à ponta da corda e cair. Bolos de gila a seguir. Descobrir a gila. A gila. Pôr-do-Sol sentada em cima do poço. A pele fria. A mesma luz do cortinado. Laranja. O maior Sol da minha vida. O maior Sol da vida. Encher o colo de pequenos cães. Fotografia e covas no sorriso da cara de vestido cor-de-rosa. Torneira e jarro branco. Enchê-lo já não lembro para quê. Homem-tio. Dois bidons encostados à parede. Espreito com esforço. Há água. Cabia lá dentro. Caramachão. Formigas e sombra das tábuas de madeira da cabana. Árvore estranha de pequenas bagas pretas. Hora de caiar. Hora de pintar. Vontade de morder a cal e achar-lhe qualquer coisa de açucar. A queda da mancha negra. Aos meus olhos, a minha avó era uma mancha negra. Estar triste às três da tarde, na sombra da casa. Cadeira de verga pequena e vermelha. Sesta. A primeira coruja. Dispensa e cheiro a dispensa dentro dela. Caixa roxa de bolos alguns degraus acima de mim. Olhar para cima. Ferraduras e erva doce. Latas de tinta, pincéis sujos. Dispensa a brincar faz de casa. A cadela negra. O filho da cadela negra. Calor. Terra faz de mousse. Bolor. Portadas de madeira. Hora de esconder a luz e a luz de manhã. Abrir a janela e procurá-la. Ouvi-la conversar. Sossegar de volta na cama. Sozinha. Giz no parapeito. Laca. Mão dada. Prima Ermelinda. Gelados Caseiros. Vizinho Marta. Sim, vizinhO. Ouvi-lo ressonar. Fugir a rir.  Nuca. Pêlo cor-de-mel. Filhos da Nuca. Ladrar. Kit à chegada. Brázia. Pupias. Mocambo. Oleado. TV espanhola. Janela do quarto do fundo. Ovo pintado. Fitas da porta que fingem cabelos. Misericórdia. Roda gigante. Jorge. Avó do Jorge. Ana Margarida, anos mais tarde. A veia do mal. D. Angelina. Vizinha Maria. Queda. Início.