«Todos os dias, das nove às cinco, sento-me à minha secretária voltada para a porta do gabinete e passo à máquina os sonhos dos outros (...)
É esta a minha verdadeira vocação»
Sexto, a partir do Sol. Hoje sonhei com Saturno.Tenho sempre muito para dizer, a toda a gente. Não entendo bem como, se sei que não quero dizer muito a toda a gente. Nada contra, as pessoas são sábias e têm, na sua maioria, jovens e bons corações. Simplesmente, não me apetece falar, porque não tenho nada para dizer sobre as coisas que os outros dizem, e eis que acabo sempre por lhes dizer mais, sobre mim e sobre eles. Quase como se, quanto mais eu travo o pensamento contra ele próprio, mais ele se delicia com a expulsão imediata do cálice, do seu espaço doméstico, a minha cabeça. Será certamente uma vingança genética pelo facto de ter nascido com o lábio superior preso ao inferior. Tento interpretar isto de forma séria, como qualquer coisa que através do meu sangue o faria prever, cuidando de mim e proibindo-me, mas acabo sempre a rir. Não gosto de escrever, de pontuar, não gosto por não gostar, nunca esperei que, dizendo que não gosto, gostem. Não admiro quem escreve, não me brilham os olhos pelos poetas, não me encantam os frutíferos pensadores dos clássicos. Não imagino serões literários a trocar citações com ninguém. Trocava qualquer coisa sobre mim, trocava-me os pés e caminhava-me. Gosto de julgar os livros pelas capas. Gosto de julgar, de achar, de prever, de adivinhar. São coisas certas, que vão acontecendo, sem precisarem do requinte da passagem do tempo. Gosto de julgar os discos pelas capas. Mas, é um facto, tive sempre muito para dizer, sem esforço, sem grandes cuidados, só pelo instinto de entender, pela lógica invertida do, se falar, entenderei. E isto, que podia vir dos livros, não vem absolutamente de lado nenhum. Talvez por isso, o meu corpo faça transbordar, através de uma maquinaria muito pouco inteligente, a literatura do dia, para a dos sonhos. Mas na prática, não há grandes enigmas, coisas históricas, misteriosas, para eu perceber. Estive ali, com um sorriso deslumbrado, no mesmo jardim onde, em criança, olhei para o céu à espera do mesmo. Ontem, deu-se mais. Acontecia qualquer coisa e eu estava dentro dela. Eu, entre duas mulheres que diziam coisas às quais eu respondia. Qualquer coisa acabava ali, ao mesmo tempo que eu respirava profundamente. Inquebrável, a fragilidade. Na verdade, poucos de nós tomamos conta uns dos outros. Como é que eu não percebo que isto é só ficção?
«Tenho o curioso hábito de identificar as pessoas que entram no serviço pelos seus sonhos. Pela parte que me toca, os sonhos caracterizam-nas melhor do que qualquer nome próprio. Há um tipo, por exemplo, que trabalha numa fábrica de rolamentos da cidade, e todas as noites sonha que está deitado de costas com um grão de areia no peito. A pouco e pouco, o grão de areia vai crescendo, até ficar avantajado como uma casa, cortando-lhe o fôlego.
Tenho um sonho só meu. O meu único sonho. Um sonho de sonhos.
É este o meu sonho. Não o encontrarão registado em nenhuma ficha clínica. Ora a rotina do nosso serviço é muito diferente da da Dermatologia, por exemplo, ou da Oncologia. No nosso serviço não se receitam tratamentos. O tratamento é invisível. Há uma certa pureza espiritual neste tipo de assistência médica»
From e in Sylvia Plath, Zé Susto e a Bíblia dos Sonhos

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