We need to talk about Kevin - 2011
« [...] There's a world where I can go /and tell my secrets to /In my room /In my room/In this world I lock out / all my worries and my fears/ In my room/ In my room
Do my dreaming and my scheming lie awake and pray/ Do my crying and my sighing laugh at yesterday/ Now it's dark and I'm alone /
but I won't be afraid/ In my room/ In my room [...] »
A ausência naquilo que se cria, que se tem, em que se acredita. E se um filho for um estranho? E se um filho tiver sido, sempre, um estranho?
A revelação de que o sangue assume, no contexto familiar, uma ilusória responsabilidade humana sobre o outro, uma espécie de falso positivo sobre toda a existência, sobre o projecto umbilical, pode constituir-se como a mais aterradora das possibilidades: o irreconhecimento de nós próprios naquilo que é nosso, por escolha ou acaso, e que acreditamos ser o nosso sentido, no universo de possibilidades da nossa vida.
O sangue está presente em todo o filme, através de uma longuíssima extensão da cor, para dizer isso mesmo, de forma cautelosa mas com uma subtileza que atinge, por vezes, o cómico. Acontece muitas vezes que queiramos limpar aquilo que existe de sanguíneo na nossa vida, aquilo que existe de ligação de sangue às coisas, às pessoas. A incompreensão no sentimento de ódio, de repulsa que se pode desenvolver por um filho, por um pai, por uma mãe, por um amigo, pela sociedade inteira, por um grupo de pessoas, pela própria vida. A nuclearidade que se ausenta daquilo que devia, por convenção natural, rodear-nos de segurança, prazer, beleza, espanto, amor. Nunca a justificação encontrada servirá, de forma lúcida e racional, para se sobrepor à vergonha e à culpa da realidade destes sentimentos.
A expressão das várias tentativas de limpeza do sangue, entendido, simbolicamente, como a ligação emocional e física entre mãe e filho - substituível por qualquer outra ligação -, surge, no filme, como que impossibilitada. As marcas de tinta nas paredes da casa, o doce de morango e as luzes avermelhadas que surgem recorrentemente ao longo de todo o filme. Os ovos partidos dentro da caixa.
Todos os esforços empreendidos, todas as fugas, as estratégias, as pequenas esperanças são gestos em vão, que caiem dentro do imenso e inexplicável buraco do dever familiar. Tens de amar o teu filho. Tens de amar a tua mãe. Tens de amar o teu pai. Tens de gostar de viver. Tens de saber ligar-te ao outro e amá-lo. Não é possível que seja de outra forma, não é possível que substituas esse sentimento por outro, não podes não desculpar, não proteger, não querer recordar, não determinar toda a tua existência a partir da tua cria, do teu espaço, das tuas pessoas, dos teus vizinhos, da tua família.
Reconhecer as escalas: uma criança não pode exercer sobre uma mãe – um adulto-, qualquer tipo de perversidade de forma intencional. Tudo o que provém de um filho, de uma mãe surge despido de erro. Uma criança não desafia um adulto de forma calculada. Não existe a mínima possibilidade de antever, nas suas acções, um plano prévio. E se uma criança é mais do que uma criança e ultrapassa a realidade física de ser, apenas, um corpo pequeno, tornando-se um símbolo de dor?
Uma mãe que não actua, que não questiona, que não castiga, que não prevê, que não teme. Uma mulher que aceita a misteriosa condição do filho e de si própria, como progenitora, e integra a estranheza que ele representa, numa vida que decorre com uma normalidade assustadora. Uma mulher que observa.
O que de mais duro acontece é que a raiz do mal, o filho, a determinado momento, inverte surpreendentemente toda a lógica do jogo, ao assumir, após um episódio - talvez no único acto explicitamente violento que a mãe dirige à criança -, a culpa prática desse gesto. Contrariamente ao que seria de esperar - que Kevin denunciasse, de forma impiedosa, o momento de desequilíbrio da mãe -, ele protege-a, afasta-a da responsabilidade. A partir desse momento, todo um esquema de poder já instituido mas nunca declarado, assume-se, claramente, aos olhos da mãe e do espectador. Esta ideia é reforçada quando, a caminho de casa, Kevin toca levemente sobre a cicatriz que resultou do acidente relembrando, de forma absolutamente brilhante, que a condução da realidade de ambos passou a ser controlada e determinada por si. Em suspenso, a verdade escondida, entre ambos.
O interesse do filme reside, acima de tudo, na abordagem que faz sobre a construção da personalidade humana. Ao deixar para trás elementos como o peso do contexto na construção da personalidade, adquire uma profundidade que, se por um lado, nos leva a percepcionar alguma originalidade na abordagem do tema, deixa-nos sem suporte, sem matéria que justifique tudo o que vimos.
Não existe contexto, ou seja, não é revelado qualquer momento de crise que possa desencadear o desenrolar dos acontecimentos. Não existe nenhum casal disfuncional, nenhuma dificuldade na relação com os bens materiais, nenhum trauma, nada se desenvolve, ao longo da acção, que possa utilizar-se. O espectador fica sem intrumentos, totalmente desprovido de argumentos. As coisas simplesmente acontecem. Acontecem por determinação da natureza, porque se nasceu assim, por moralidade orgânica, porque se foi sentindo assim em relação a tudo. Não há qualquer prótese existencial mostrada ou sugerida. Nenhum contexto moral, nenhum perfil educacional pré-determina a conduta do indivíduo. Daqui que o próprio protagonista, na cena final do filme, em que o abraço materno surge em forma de perdão universal assuma a não compreensão do seu acto e responda, ao porquê, com a ignorância de quem desconhece o sentido de tudo.
Curiosamente, e após o culminar que se adivinha desde o início do filme, aquela que sempre funcionou como objecto/alvo de violência é a única que é salva por Kevin. Salvação esta imbuída da mais cruel das condenações: a memória.
A questão: e se o mal for inato e se constituir, apenas, como uma banalidade?
«There is no point. That`s the point»